quinta-feira, outubro 07, 2010

Os Três Mal-Amados

De João Cabral de Melo Neto


Joaquim:

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.

O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.


As falas do personagem Joaquim foram extraídas da poesia "Os Três Mal-Amados", constante do livro "João Cabral de Melo Neto - Obras Completas", Editora Nova Aguilar S.A. - Rio de Janeiro, 1994, pág.59.


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Minha homenagem ao João Cabral de Melo Neto, que também merecia o Nobel de Literatura.

Merda? Só no ventilador




Não sou artista, mas admitido: tentei ser inúmeras vezes e em diversas modalidades. A primeira tentativa foi a dança, com a famosa modalidade doa anos 80, a do 'jazz'. A iniciativa só serviu para dar a minha infância um tom ainda mais melodramático, quase como roteiro de novela mexicana. De tão descordenada quase fui parar no consultório sob suspeita de dislexia.

Mas continuei tentando ser uma pessoa do meio artístico. Aos 12, era 'atleta' de ginástica olímpica. Foram dois anos de intenso treinamento que me deixaram um aprendizado eterno: como levantar sorrindo depois de uma apresentação sofrível em um ginásio lotado. Explico: eu era boa naquilo - aprendi parada de mão, mortal e alguns exercícios no cavalo. Mas, ironicamente, empacava feito mula no fundamental exercício da 'estrela'. Não acha ironia? Lembre-se: eu me chamo Stela - nome que, em latim, significa estrela. Okay, conformei-me em não ser uma supernova e ficar como a primeira estrela estática do cosmos.




Naquele mesmo tempo, eu cantava na escola acompanhada de um colega, que conheci na igreja! Ele virou músico e, como cantor de musical, foi morar na Itália. Eu? Ganhei uma rouquidão (que estudo se é patológica ou apenas fruto do jeito sexy e peitoral do latino-americano) e virei jornalista, que era um segundo sonho meu, além da música.


Desajeitada para a ginástica e a dança, aos 14 fui me arriscar no teatro. Foram menos de quatro meses de oficina que eu frequentava na cidade vizinha onde eu vivia até pouco tempo, no Vale do Paraíba paulista. O professor, muito simpático, dizia que eu levava jeito (acredito que por dó das minhas desventuras com as artes). Talvez se eu pudesse viver um personagem que não exigisse muita coordenação motora, como um abajur, penso agora. Porém, minha futura carreira nas artes cênicas foi enterrada por um gesso, quando quebrei meu pé voltando da aula.





Restou-me a arte da escrita: mas oito anos como repórter de jornal diário acabam com o sonho de qualquer escritor. Parafraseando João Cabral de Melo Neto, o jornalismo diário "comeu meu nome, minha identidade, meu retrato", minha vontade de escrever um livro. Fiquei perdidinha em pautas sobre aprovações de projetos de lei, vazão de reservatórios, explosões e incêndios... Até que acabei me encontrando justamente onde todos se perdem: no Carnaval.

Ao conhecer a festa profana da pequena cidade de São Luiz do Paraitinga (SP), dei-me conta que não nasci para ser artista: estou aqui pra estudar esses fenômenos. Durante três anos, enterrei-me na literatura sobre o tema e fui estudar Sociologia da Comunicação e da Cultura.

Graças ao caos que o mundo (ou seria as leis da física?) nos impõe, aportei na tríplice fronteira brasileira neste ano, deixando parte do meu coração em minha terra natal. A outra parte está aqui, batendo forte nesta nova tentativa de receber os votos de 'merda' ao final deste espetáculo que é a vida.