terça-feira, julho 22, 2008

'Artesanando'




Nunca fui à França, mas dizem ser comum cultivar pequenos ‘relicários’ com lembranças da vida logo à entrada das casas.
Quando adolescente, eu fazia o mesmo com diários: era uma cultuação quase religiosa a minha própria história. Era uma febre, à época, colar de tudo nas agendas –de ingressos de cinema nos extintos cine Rio Branco e Rosário, papéis de bala, passaportes do PlayCenter. Houve um tempo em que fiquei apaixonada por um fumante –e até as bitucas de cigarro do ser amado platonicamente deixavam a agenda cor-de-rosa embuída de um odor fétido.

Na mesma época, eu costumava escrever cartas longas pra amigos distantes. Também naquele período o critério de distância era diverso de hoje –qualquer 20 quilômetros já significavam uma barreira intransponível entre eu e meus queridos amigos de terras ‘longíquas’.

Esse hábito fora adquirido desde cedo, quando eu escrevia para as colunas infantis entituladas ‘faça amigos’ ou coisa parecida dos jornais como Estadão e Folha. Para ilustrar as cartinhas, eu recortava revistas e gibis.

A gente costuma pensar, quando criança, que mudaremos em essência quando adultos. Quando adultos, percebemos que o que fomos será sempre o que é, assim, no presente simples. E vamos conjugando a vida sem saudosismo, mas no pretérito perfeito –cujo significado traduz uma ação que começou no passado e ainda não foi concluída. Passara, mas continuara. Assim sou eu.

Mário Quintana traduz essa idéia em uma frase que adoro: “as coisas que não conseguem ser olvidadas continuam acontecendo. Sentimo-las fora de tempo...”. E por aí vai.

Percebo claramente hoje essa infância na minha maneira de vivenciar o mundo e de colecionar recortes: fazendo cut-up (mesmo sem conhecimento prévio de William Burroghs) do dia-a-dia.
Esses recortes viram artesanato que costumo dar para amigos e outros queridos. São relicários onde emprego mais que papel, madeira e outras bobagens –são pedacinhos da minha vida, do tempo que dediquei na ação de amor à pessoa.

Assim como os franceses, eu também cultuo relicários. No meu caso, eles só têm motivo de ser quando faço o que mais gosto: compartilhá-los, como devem ser as alegrias dessa vida.

Stela Guimarães
22 de julho de 2008

domingo, julho 06, 2008

Auto-biografia



Tão certo como os contos de fada iniciam com "era uma vez", as histórias de amor são invariavelmente pautadas pelo tempo. Tal fato comprova-se pelo excesso de sentenças como "naquele tempo" ou "passados muitos anos". A explicação para tal motivo, furtada de Drummond de Andrade: "Eterno, é tudo aquilo que dura uma fração de segundos, mas com tamanha intensidade, que se petrifica, e nenhuma força jamais o resgata".

É certo que amamos muitas vezes apenas a lembrança: não se trata de desejar o interlocutor desse processo. Amamos os fragmentos de memória que estão dentro da gente, congelado no espaço. E no tempo.

O tempo pode ser o vilão --apaziga o desejo carnal, embala a cotidianidade, leva a graça do corpo físico. O tempo pode ser um desafio: passa pela superação dos obstáculos do dia-a-dia. Mas há histórias nas quais o tempo e a distância atuam como terceiro protagonista: são personagens necessários para a construção de um outro conceito comum nas histórias de amor: o reencontro.

Esse capítulo começa como um hipertexto: fragmentado como corações partidos, outro chavão dos romances. Do final para o começo.

Para ela, era a última memória dele que não seria esquecida. Ela havia estabelecido esse procedimento como uma forma de auto-proteção. Preferia pensar sempre nas últimas conversas. E não sabia por quais razões, elas sempre lhe remetiam a um final. Um certo momento, iriam inevitavelmente se separar novamente (embora não estivesse juntos fisicamente). Ele partiria. E ela nunca mais seria igual. "Nunca fora mesmo", pensou, enquanto balançava os ombros.

Fora essa sensação determinante para que ela desejasse aproveitar de sua presença com uma força quase atômica. Ele a fazia pensar em fórmulas químicas já esquecidas desde os tempos do colégio. Ela o inspirava lentamente --seja qual fosse a distância entre seus corpos. Era um esforço pela troca de algo físico: partículas suspensas no ar, moléculas que ela imaginava coloridas e perfumadas, cumpririam sua maratona pelo corpo dele, dos pulmões para o sangue, para os pulmões e para o ar --e assim ela inventava sistemas corpóreos inexistentes apenas para imaginar esse toque intangível.

Eles haviam se conhecido muito cedo --crianças ainda. Se amaram com a inocência das paixões infantis e partiram, como não poderia deixar de ser. Trilharam caminhos diversos e de um modo estranho, convergentes. E no reencontro depois de mais de 15 anos descobriram similaridades fortalecidas pela sensação da lembrança.

De súbito, ela lembrara de Rayuela, de Júlio Cortázar. Queria ser como o cíclope metaforizado pelo escritor. Em seguida, decidiu-se concentrar apenas na troca de moléculas suspensas no ar, que já deixavam os vidros do veículo ofuscados naquela noite fria. Nesse momento, confirmou-se nela uma vontade absurda de beijá-lo, mas engoliu o desejo no lugar da saliva: não tinha o direito de irromper em um ato impulsivo, muito embora ela não tivesse dúvidas sobre sua vontade e sentimentos. Tocou então com suas mãos os lábios e poderia fechar os olhos porque conhecia aqueles contornos. Fazia isso por si mesma e por ele também. Pois era exatamente em seus braços onde ela queria estar. Naquele tempo, ela estava feliz. Outra vez.

Pouco importava quem tinham sido, pensava ela, mas no que se tornaram. Até então, seu amor residia apenas naqueles fragmentos de memória --dentro dela, fora dele. Menos importante ainda era a forma física de cada um: com os olhos da alma, poderia revê-lo novo como uma criança, velho como Floriano Ariza, de Garcia Marquez. E qualquer imagem seria de uma singular beleza, daquelas que a gente encontra somente nas irradiações do crepúsculo do outono.

Ela sabia que ele iria. Mas não poderia deixar de tentar. Não depois do abraço que ganhara: um prêmio para um coração tão acizentado e descrente. Fora como para um desabrigado receber uma bebida quente e cobertor em noite fria de inverno: abrigo. Sim, abrigada em sua morada, foi como ela se sentiu ali. Colorida naturalmente.